quarta-feira, 6 de junho de 2012

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As oito da manhã o celular tocava. A preguiça de abrir os olhos, de levantar, de começar mais um dia era grande. Olhava para o lado e via minha pequena dormindo num sono profundo e gostoso, chegava a dar inveja! Já percebia que estava virando gente grande e isso começava a ficar chato. Se não desse sinal de vida pelo corredor da casa, já vinha alguém abrir a porta de mansinho e falar: Oito e quinze já! Levanta filha! – que saudades dessa voz! No corredor um bom dia baixinho, um beijinho no rosto. A mesa do café já estava pronta, e a coisa começava a ficar mais agitada, como se todo mundo fosse despertando aos poucos. Da rua um grito de BOM DIA ecoava no corredor do quintal. O cherio do café trazia gente do outro lado da cidade! A casa despertava de vez! Chegando perto das nove tudo ficava mais agitado, quem entrava as oito estava atrasado, quem entrava as nove ia ficar se demorasse mais um pouco, e a única que não tinha horário para nada, levantava e vinha, com olhos inchados dar um beijo de bom dia em todo mundo. Quinze para as nove. Agradecia a carona até o serviço e entrava ligeirinho fazer o login – tipo bater o cartão. Já de manhã as linhas eram movimentadas. Era reclamação, pedido, reclamação, gente perdida, reclamação. Lidar com pessoas nunca é nem de perto fácil. Quinze minutos de pausa. Tem gente na fila esperando para ser atendido, e fazer adivinha o que? Mais dez minutinhos de pausa, agora, só parava ás três, quando era hora de ir para casa. Saia tranquila, sem pressa, parava em frente ao prédio – que não era bem um prédio – e buscava o rosto conhecido que ia me levar para casa. Em um mês, dava para contar nos dedos as vezes em que ninguem pode ir me buscar. Nesses dias, 40 minutos andando resolviam o problema. Chegava em casa e queria dormir. Resolvia estudar. A lembrança do fracasso vinha na memória e doía! E como doía! A reprovação foi uma das, se não a pior dor da qual me lembro. O gosto de não conseguir, de não ser capaz, era amargo, como nada mais nessa vida. Sentava na mesa com os livros e o desanimo. Trinta, quarenta minutos no máximo e já não aguentava mais. Saia buscar minha irmã na escola. As ruas, o movimento dos carros, a tranquilidade das pessoas que andavam na rua aquele horário eram boas para pensar. De volta para casa a angústia de voltar para sala de aula já começava a tomar conta de mim, e a tentativa de mostrar que estava tudo bem era totalmente falha. Nunca soube mentir, e ainda mais agora. Todo mundo sabia que a vida toda eu sempre quis isso. Sempre me preparei para isso. E falhei. Sei bem onde errei, mas isso não me consola. Sei que poderia ter me empenhado mais, mas isso também não em consola. E saber que a grande maioria passa pelo que eu estou passando e faz o que eu estou fazendo, com certeza não me consola. Não me importa a grande maioria. Era incrível como me sentia deslocada na sala, não conseguia conversar com ninguem, não queria conversar com ninguem. Todos estavam animados para começar, ou começar de novo, e isso de certa maneira me incomodava. Mais um ano escutando sobre como é necessário estudar muitos todos os dias. Me falaram isso durante os três anos do colegial. Eu sei. Sabia quando abria mão de estudar para fazer qualquer outra coisa. Bem feito pra mim! Voltava pra casa e até a hora de dormir, aquela era a melhor hora do meu dia. O colo dela me faz tão bem! A conversa, as risadas. Qualquer momento no qual estou com ela torna tudo tão melhor! É incrível nossa ligação. Ela é tão eu, quanto eu sou tão ela. Um beijo de boa noite, um te amo e mais um dia acabou. Era angustiante pensar que, talvez, o resto do ano fosse assim. Talvez..


A rotina da manhã foi a mesma. Era dia de chamada na faculdada. A penúltima. Foi mais de um mês de tortura. Olhando e se decepcionando quase toda semana. Apesar do no fundo eu esperar que ainda desse certo , uma parte de mim dizia que era para se conformar e seguir em frente, afinal, como todos diziam, eu ainda era nova. Besteira! Enfim, nem lembrei que era dia de chamada, nem me preocupei. Sabia que ia receber meu primeiro salário, e resolvi concentrar meus pensamentos nisso. As três da tarde em frente ao prédio ela me esperava enconstada no carro. Entrei. Tinha um papel dobrado em cima do painel. Passou pela minha vista mas não me chamou a atenção. Já estava falando sobre ir no banco e sobre o dinheiro. Ela me interrompeu e disse: chegou para você. Eu nunca vou esquecer cada segundo daquele momento. O carro estacionado na sombra, os óculos escuros no rosto dela já não seguravam mais as lágrimas, e o papel. Passei. Dali pra frente parece que alguem me virou de cabeça para baixo. Três dias era um tempo que me restava para mudar . Mudar de casa, mudar de cidade, mudar de estado. Mudar, mudanças e outros sinônimos definem bem o que se passou dali para frente. A empolgação não me permitia chorar por pensar na distância que iria reinar entre eu e meus pais, meus irmãos e toda a família. A alegria do sonho realizado me anestesiava totalmente. Não posso reclamar, a sorte estava comigo e em três dias eu deixei de ser filha e comecei a ser gente grande. Que saudades de ser filha. Hoje, faz um ano, um ano comprido e curto ao mesmo tempo. Claro e escuro. De todos os opostos possíveis. Nunca ri, nem chorei tanto. Nunca mudei, nem cresci tanto. Nunca fiz besteiras ou coisas certas ao mesmo tempo e em tão pouco tempo. Nunca senti tanta saudade. Nunca. Ver a vida do lado de lá passar e não estar presente é perder um pouco de mim a cada segundo. E ver minha vida seguir sem eles aqui.. Me perco muito as vezes. Demoro para reencontrar um bom motivo para ter deixado tudo para trás, e quando encontro, me consome pensar que sempre alguma coisa vai ter que ficar para trás. Penso na quarta serie, primeira vez que a vida me fez abandonar o passado. Na oitava serie, segunda vez que tive que deixar as coisas para trás – e como foi sofrido. Penso no terceiro ano. Nos amigos. Na cidade de ruas conhecidas, de lugares familiares, nas pracinhas e nas pessoas. Penso na casa, com cheiro de casa, com cheiro de mãe e de comida de vó. Penso no barulho, nas vozes corridas e exaltadas no almoço, na tranquilidade do domingo e na correria do sábado de manhã. Penso nos passeios no shopping, na sexa, na terça e na segunda se desse vontade. Penso no beijo de bom dia, de boa noite e no beijo de qualquer hora. Me disseram uma vez que com o tempo você acostuma. Você para de sofrer. Para de querer voltar atrás. Para de sentir saudade que dói. Mas sabe, eu acho que com o tempo você só para de chorar com facilidade. Você aprende a engolir a seco. A disfarcar os olhos embaçados. E a saudade.. bom, digamos que sua sombra pode sumir, mas ela não. E sinceramente, ela não para de doer. É difícil, entende?